segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Os bolcheviques de hoje

Por Adelson Vidal Alves



Fevereiro e Outubro de 1917 são etapas distintas de um fato histórico de grande importância no século XX: a revolução russa. Para muitos, o século inicia neste ano e só termina quando o fruto principal deste grande evento desmorona, em 1991, com o fim da União Soviética. Contar a história da chamada revolução bolchevique, na verdade um golpe de Estado que destituiu a fração minoritária dos revolucionários russos do poder, não é nada fácil, ela envolve sentimentos e paixões ideológicas no qual nem mesmo o historiador está a salvo.

Mas me parece claro que a principal concretização do sonho marxista esteve envolvida em grandes distorções em relação ao que pensava e desejava Marx e seus seguidores mais autênticos. Depois da dissolução da Constituinte e a consolidação do golpe liderado por Lênin, os anos que se seguiram contrariaram as previsões do filósofo alemão. A “gloriosa revolução proletária” (o proletariado na verdade não chegou ao poder) deu inicio a sanguinárias ditaduras, sobretudo no período stalinista (1926-1953) onde processos foram forjados, oposicionistas perseguidos, camponeses assassinados e as liberdades mais básicas extintas.

Além das possíveis traições da direção revolucionária em relação à utopia comunista, denunciada por Trotsky, por exemplo, a revolução também sofreu interferências das condições objetivas da Rússia, um país agrário e atrasado, sem um operariado desenvolvido. Além disso, ela não veio acompanhada de outras revoluções, em países mais desenvolvidos, como na Alemanha, onde os trabalhadores preferiram a social-democracia. O fracasso da “revolução mundial” isolou os revolucionários russos, que só conseguiram sobreviver e se desenvolver em um regime com mão de ferro e uma política desenvolvimentista que custou fome, trabalho forçado e milhões de mortes.

As condições da Rússia pré-revolucionária desafiavam a teoria marxista, que só cogitava uma revolução de sucesso em países onde as forças produtivas estivessem devidamente desenvolvidas. O triunfo do grupo de Lênin levou muitos a refletir sobre o que então era impensável. Foi o caso de Gramsci em seu famoso ensaio “A revolução contra o Capital”, e depois seu sistemático pensamento no cárcere, onde a grande questão era: por que a revolução socialista triunfou em um país atrasado e fracassou em uma nação desenvolvida? Daí, o comunista italiano vai elaborar sua teoria política revolucionária no qual se destacará os conceitos de “Ocidente” e “Oriente” que representam realidades econômicas particulares do capitalismo que exigiria, cada uma delas, um tipo diferente de estratégia revolucionária.

As questões que envolvem a revolução bolchevique, prestes a completar 100 anos, ainda hoje provoca historiadores, cientistas sociais e militantes anti-capitalistas de todas as correntes. No centro das discussões, não só as possibilidades históricas oferecidas ou não à direção revolucionária bolchevique, mas, principalmente, um elemento certamente desprezado em sua trajetória histórica, e que muitos atribuem como fator decisivo na derrota do regime soviético, que é a questão democrática. Os diferentes governos da URSS, em proporções diferentes, trataram a democracia como um elemento dispensável, parte deles seguia a risca a distinção leninista de “democracia burguesa” (democracia parlamentar) e “democracia proletária” (democracia direta).

Nos dias de hoje, um século após Outubro de 2017, qual o papel da democracia na reflexão da esquerda? É possível ainda hoje usar como atual a fórmula bolchevique de revolução?

Mesmo parecendo anacrônico, ainda há grupos e partidos dispostos a repetir o êxito bolchevique em pleno século XXI. Para estes, as transformações mundiais pouco importam, segue vivo o dogma de que o socialismo é o substituto natural do capitalismo, num percurso inevitável da história. Bastaria esperar o amadurecimento das leis históricas para que ela mesma, quase que sozinha, dê cabo ao capitalismo e sua dinâmica contraditória. A democracia? Bem, ela seguiria sendo uma máscara da ditadura burguesa. Deve ser usada temporariamente, até a ditadura do proletariado e a condução para um mundo sem Estado e sem classes.

Os bolcheviques de hoje desprezam as eleições, ignoram a abertura do Estado para a participação popular, ele segue sendo para eles uma fortaleza inatingível da burguesia, o Estado-coisa, no termo feliz utilizado por Nicos Poulantzas.

Dispostos a enfrentar o Estado de fora pra dentro, sem alianças pontuais e com desprezo militante contra os partidários do reformismo, os neo-bolcheviques tratam como traidores àqueles que advogam uma luta gradual por espaços na sociedade e no Estado, rumo a um socialismo democrático. Seriam todos revisionistas, pequeno burgueses etc.

Um mundo que não mais existe ainda permanece no espírito dos bolcheviques de hoje. A revolução tecnológica, a socialização da política, o encolhimento do operariado, a perda de relevância da luta de classes, parecem não significar nada para eles, que permanecem aguardando o grande dia em que assaltarão definitivamente o Palácio de Inverno.


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