Por Adelson Vidal Alves
Fevereiro e Outubro de 1917 são
etapas distintas de um fato histórico de grande importância no século XX: a
revolução russa. Para muitos, o século inicia neste ano e só termina quando o
fruto principal deste grande evento desmorona, em 1991, com o fim da União
Soviética. Contar a história da chamada revolução bolchevique, na verdade um
golpe de Estado que destituiu a fração minoritária dos revolucionários russos do
poder, não é nada fácil, ela envolve sentimentos e paixões ideológicas no qual
nem mesmo o historiador está a salvo.
Mas me parece claro que a
principal concretização do sonho marxista esteve envolvida em grandes
distorções em relação ao que pensava e desejava Marx e seus seguidores mais
autênticos. Depois da dissolução da Constituinte e a consolidação do golpe
liderado por Lênin, os anos que se seguiram contrariaram as previsões do
filósofo alemão. A “gloriosa revolução proletária” (o proletariado na verdade
não chegou ao poder) deu inicio a sanguinárias ditaduras, sobretudo no período
stalinista (1926-1953) onde processos foram forjados, oposicionistas perseguidos,
camponeses assassinados e as liberdades mais básicas extintas.
Além das possíveis traições da
direção revolucionária em relação à utopia comunista, denunciada por Trotsky,
por exemplo, a revolução também sofreu interferências das condições objetivas
da Rússia, um país agrário e atrasado, sem um operariado desenvolvido. Além
disso, ela não veio acompanhada de outras revoluções, em países mais
desenvolvidos, como na Alemanha, onde os trabalhadores preferiram a social-democracia.
O fracasso da “revolução mundial” isolou os revolucionários russos, que só
conseguiram sobreviver e se desenvolver em um regime com mão de ferro e uma
política desenvolvimentista que custou fome, trabalho forçado e milhões de
mortes.
As condições da Rússia pré-revolucionária
desafiavam a teoria marxista, que só cogitava uma revolução de sucesso em
países onde as forças produtivas estivessem devidamente desenvolvidas. O
triunfo do grupo de Lênin levou muitos a refletir sobre o que então era
impensável. Foi o caso de Gramsci em seu famoso ensaio “A revolução contra o
Capital”, e depois seu sistemático pensamento no cárcere, onde a grande questão
era: por que a revolução socialista triunfou em um país atrasado e fracassou em
uma nação desenvolvida? Daí, o comunista italiano vai elaborar sua teoria
política revolucionária no qual se destacará os conceitos de “Ocidente” e “Oriente”
que representam realidades econômicas particulares do capitalismo que exigiria,
cada uma delas, um tipo diferente de estratégia revolucionária.
As questões que envolvem a
revolução bolchevique, prestes a completar 100 anos, ainda hoje provoca
historiadores, cientistas sociais e militantes anti-capitalistas de todas as
correntes. No centro das discussões, não só as possibilidades históricas
oferecidas ou não à direção revolucionária bolchevique, mas, principalmente, um
elemento certamente desprezado em sua trajetória histórica, e que muitos
atribuem como fator decisivo na derrota do regime soviético, que é a questão
democrática. Os diferentes governos da URSS, em proporções diferentes, trataram
a democracia como um elemento dispensável, parte deles seguia a risca a
distinção leninista de “democracia burguesa” (democracia parlamentar) e “democracia
proletária” (democracia direta).
Nos dias de hoje, um século
após Outubro de 2017, qual o papel da democracia na reflexão da esquerda? É
possível ainda hoje usar como atual a fórmula bolchevique de revolução?
Mesmo parecendo anacrônico,
ainda há grupos e partidos dispostos a repetir o êxito bolchevique em pleno
século XXI. Para estes, as transformações mundiais pouco importam, segue vivo o
dogma de que o socialismo é o substituto natural do capitalismo, num percurso
inevitável da história. Bastaria esperar o amadurecimento das leis históricas para
que ela mesma, quase que sozinha, dê cabo ao capitalismo e sua dinâmica
contraditória. A democracia? Bem, ela seguiria sendo uma máscara da ditadura
burguesa. Deve ser usada temporariamente, até a ditadura do proletariado e a
condução para um mundo sem Estado e sem classes.
Os bolcheviques de hoje
desprezam as eleições, ignoram a abertura do Estado para a participação
popular, ele segue sendo para eles uma fortaleza inatingível da burguesia, o
Estado-coisa, no termo feliz utilizado por Nicos Poulantzas.
Dispostos a enfrentar o Estado
de fora pra dentro, sem alianças pontuais e com desprezo militante contra os
partidários do reformismo, os neo-bolcheviques tratam como traidores àqueles
que advogam uma luta gradual por espaços na sociedade e no Estado, rumo a um
socialismo democrático. Seriam todos revisionistas, pequeno burgueses etc.
Um mundo que não mais existe
ainda permanece no espírito dos bolcheviques de hoje. A revolução tecnológica,
a socialização da política, o encolhimento do operariado, a perda de relevância
da luta de classes, parecem não significar nada para eles, que permanecem
aguardando o grande dia em que assaltarão definitivamente o Palácio de Inverno.